20091020

Programa de Indie

CARLA CASTELLOTTI
TALITA MARQUES
Especial para a Gazeta

No Ar Coquetel Molotov, festival recifense em sua sexta edição, cresceu mais este ano. Com uma programação plural e arriscada, apostou tudo e mereceu aplausos de quem passou pelo evento. O festival, que nos anos anteriores era reduto de jovens curiosos sobre música, abriu espaço neste ano para o tradicional e revolucionário show de comemoração dos 35 anos de Clube da Esquina. No entanto, a grande responsável pela venda de ingressos foi a banda norte-americana Beirut.

Recife, PE – No caos de Recife se organiza um dos principais festivais de música alternativa do Brasil, o No Ar Coquetel Molotov, ocorrido nos últimos 18 e 19 de setembro. Este ano, o festival contabilizou mais 5500 pessoas, no que parecia um grande shopping center indie. Justiça seja feita, a produção conseguiu combinar propostas para diferentes públicos e gerações em 16 apresentações, reunidas numa decisão acertada de mudar o local anterior dos shows (as edições antigas haviam acontecido no Auditório na UFPE).

As atividades se iniciaram uma semana antes dos principais shows, movimentando a cidade com mostras de filmes, oficinas, debates e pocket shows. A presença de bandas suecas e francesas, três para cada lado, deu-se por meio da parceria com o Swedish Institute e com o subsídio do Ano da França do Brasil. O Coquetel Molotov é um dos poucos festivais independentes a remunerar todas as bandas envolvidas, valorizando seu produto bruto, fato que não é regra na cena Brasil afora. De 2004 para cá, quando estreou, o Coquetel trouxe medalhões do rock independente internacional, a exemplo de Teenage Funclub (Escócia), The Kills e Tortoise (EUA), Nouvelle Vague (França) e Peter Bjorn and John (Suécia), e nomes nacionais como Cidadão Instigado (CE), Móveis Coloniais de Acaju (GO), Guizado (SP), Marcelo Camelo (RJ) e Cibele (SP), mantendo-se na vanguarda da produção cultural.

Além dos vizinhos alagoanos, muita gente de outros Estados apareceu para curtir os dois dias de shows no espaço organizado e refrigerado. Na sexta, às 18h00, o Centro de Convenções de Pernambuco já estava abarrotado. Muita gente circulava entre barraquinhas de roupas, HQs, discos e CDs. Para quem se arriscasse em frente ao público, um dos patrocinadores armou um palco-estúdio para jam sessions, no qual as improvisações eram gravadas.

Os shows foram divididos em dois palcos. O primeiro, o Auditório Tabocas, aberto também para não-pagantes, dava a largada da maratona festiva em um espaço bastante agradável. O Teatro Guararapes, por sua vez, fazia continuar aos trabalhos, ainda que de forma um pouco castradora, uma vez que lá não se podia comer, beber, fumar. E não para por aí, há sempre questões protocolares, dúvidas como levantar ou ficar sentado, apreciando educadamente. Combina pouco com música independente, mas pensemos na acústica, que esteve perfeita em todas as apresentações.

O grande lance de ser ir a um festival não é somente assistir a uma apresentação ao vivo de um grande hit da novela. Além do hypado, está o clima que envolve os aglomerados de bandas. As surpresas sempre existem, para o bem ou para o mal. A banda que parece incrível no mp3 player, ao vivo pode se mostrar pouco expressiva, a ponto do espectador sair de fininho, constrangido, para comprar uma cerveja. Por outro lado, nomes que antes nada diziam correm o risco de se tornar os serão ouvidos incessantemente nos próximos meses.

E COMEÇA A FESTA NO RECIFE

No palco secundário, os mineiros da Dead Lovers and Twisted Heart atacaram, no início da noite, com um som moderninho, de letras fáceis e grudentas. Dentre as apresentações gratuitas, a cereja do bolo foi a banda sueca Those Dancing Days. As garotas divertiram o público, com seu indefectível pop dançante, com direito a um inusitado cover de Toxic, da Britney Spears.

No teatro Guararapes, Jam da Silva Abriu os trabalhos. O pernambucano, que compõe algo que remete a DJ Dolores & Orchestra Santa Massa, misturou sons de instrumentos artesanais a batidas eletrônicas. Jam preenche bem seu som, mostrando-se maduro ao compor a chamada música universal, conceito um tanto desgastado, mas que aparece oxigenado quando nas mãos do percussionista.

Com corpos cansados e pileque subindo no gráfico, era chegada a hora de ver o show da dupla paulista Thiago Petit e Tié. Duas vozes doces, uma amante do samba, outro do tango. Embora Caetano tenha falado tão bem da moça, o duo se colocou timidamente no palco, que por vezes parecia imenso, apesar das belas canções. O público viu e aplaudiu os jovens cantores. As letras em inglês e o flerte com outros ritmos pareciam, ao final, apenas um resquício do que um dia já foi bossa nova.

Cabiam pouco mais que sete formigas ensaboadas no auditório que aguardava Beirut e, nesse embalo, apresentou-se Sebastian Tellier. O fogoso francês prometia deixar todo o público envolvido com seu erotismo, ainda que sua figura não provocasse efusões nesse sentido. Foi um show rápido, Tellier apresentou seis composições. Nada muito lascivo, mas muito bem executado e humorado, som ao vivo com sintetizadores e instrumentos tradicionais, semi-dançante e decerto de espírito rocker, o que cativou o povo, provocando gritinhos de bis.

O primeiro dia era da banda norte-americana Beirut. De acordo com Jarmeson Lima, produtor do festival, acima de três mil pessoas circularam no local, somente na sexta-feira. Ingressos esgotados, cambistas mostrando os dentes. A minisérie global Capitu, adaptação da obra Dom Casmurro, mesmo com horário tardio, pegou os adolescentes apaixonados de jeito com Elephant Gun, canção que virou música da vida de vários deles.

Beirut foi um daqueles shows para se gabar de ter visto, mesmo com público histérico à Los Hermanos. A banda mais esperada do dia já entrou entoando Nantes, do último álbum The Flying Club Cup. Além dos instrumentos convencionais, cambiados conforme a música, juntam-se a eles o acordeão, o bandolim e o ukulelê – este tipicamente havaiano – além dos da família dos metais: trompete, euphonium e o fliscorne.

Após algumas audições, a sensação é de novas roupagens para uma espécie canção inconsciente, com Zack Condon, vocalista do grupo, levando-nos com sua voz terna, até o esperado ápice, provocado pelos metais, violentos e melancólicos. Com ares de pesquisador, Condon, de apenas 23 anos, passeia forte em suas composições, do Leste Europeu ao México – sem esquecer, claro, de clássicos como o grupo britânico The Smiths.

O show de Salvador, consta, destoou do de Recife. Segundo relatos, a embriaguez do líder e seus compartes mostrava-se evidente na apresentação soteropolitana. Já na Veneza Brasileira, a coisa mudou de figura, o grupo aparentava estar bem mais sóbrio que o público. Apresentou versões de La Javanaise, de Serge Gainsbourg, e de Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, fazendo o teatro se empolgar sobremaneira, compensando de vez qualquer lambança anterior. Ao final do show, apesar do grande número de seguranças no entorno do palco, uma garota de vermelho conseguiu invadi-lo, sussurrou algum segredo para o vocalista, fazendo-o retornar para uma última canção.

SEGUNDO DIA, OU SEJA, MILTON NASCIMENTO

Diferentes gerações dividiam o mesmo espaço, no sábado, para ver a grande atração anunciada com mistério: Lô Borges convida Milton Nascimento para uma apresentação em nome dos 35 anos do Clube da Esquina.

No auditório dos shows gratuitos, foram bandas pernambucanas que animaram a maior parte do público. Radistae estreou bem com seu surf music cheio de metais, que contaram com a presença do maestro Spok, da Spok Frevo Orquestra. Em seguida, os meninos da Sweet Fanny Adams desceram a mão nas guitarras sem distorção pra fazer um rock cru, lembrando Franz Ferdinand nos momentos mais dançantes e, quando imprimindo peso, Queens of The Stone Age.

François Virot começou seu show tocando baixinho no violão um folk intimista, com bonita voz – talvez fosse mais adequado locá-lo no teatro Guararapes, o que não impediu o francês de representar bem seu som. Menos discretos, os compatriotas de Virot do Zombie Zombie animaram com força a última apresentação do palco secundário. Formada por Etienne Jaumet (sintetizadores) e por Cosmic Neman (bateria), o par agarrou o público que se preparava para mudar de arena, apresentando um projeto performático que se valia, criativamente, de aparelhos vintage como delay analógico, gravador de fita cassete, piano de brinquedo, além de um teremim nervoso que lembrava a trilha sonora de um thriller animadinho.

Para alguns, o show do projeto São Paulo Underground foi cansativo e até soou randômico. No entanto, a banda do virtuoso Maurício Takara mostrou-se em um momento de ansiedade crítica por Milton Nascimento – ou, talvez, o público ali não estivesse interessado em conhecer algo mais experimental. Parece ter havido uma estratégia de escalação infeliz, o povo queria música com refrão. Takara e seus amigos apresentaram um som que se assemelha, em parte, ao que ele faz na banda Hurtmold, mais conhecida por ser a que acompanhou Marcelo Camelo em sua turnê do álbum Sou/Nós. Nem o Bolero de Ravel estilizado ajudou a animar os fãs do Miltão.

Não há como escutar Lonely, Dear, sem remeter o som, já na primeira música, aos escoceses do Belle & Sebastian. Eles nem pretendem esconder as referências, o que ao menos, deixa o som simples e limpinho. O show dos suecos apenas distraiu quem esperava o principal da noite.

No show em que Lô Borges convidou Milton Nascimento, mesmo para os não-fãs, foi de hipnotizar. Até um desavisado, que porventura adentrasse no Teatro Guararapes, saberia que ali estava havendo algum tipo de transe coletivo. Lô começou cantando com sua banda os clássicos do Clube da Esquina, títulos como Paisagem na Janela e Trem Azul e mais os sucessos Dois Rios e Resposta, composições que ficaram famosas a frente do grupo Skank.

Bastou Bituca, apelido carinhoso de Milton Nascimento, entrar no palco e cantar no piano Cais para que o público fosse a baixo. Um show foi grandioso, cheio da importância histórica contida em cada um dos compositores e arrematou a sexta edição do No Ar Coquetel Molotov, que vem evoluindo e experimentando a cada ano.

Para os que não foram este ano e se animaram com a proposta, em 2010 tem mais. Os pedidos e especulações começam desde já na internet. Basta seguir o Coquetel Molotov – no Orkut, Twitter, Flickr e afins – e fazer seus pedidos e orações e, de resto, esperar pelos próximos arremessos.


Matéria publicada na Gazeta de Alagoas do dia 26 de setembro de 2009. Fotos de Caroline Bittencourt.


| MERCADO FONOGRÁFICO |


Para além da criação, o futuro da música
Quarta edição do Porto Musical reuniu artistas e produtores do Recife; em discussão, as mudanças no consumo na era de internet

TALITA MARQUES *
Especial para a Gazeta
28.06.09


Recife, PE – As adjacências da Torre Malakoff, no Recife, foram tomadas por gente que, de alguma forma, tinha ligação com a chamada “música independente”. Mas o motivo do encontro foi mesmo o Porto Musical, evento realizado entre os dias 17 e 20 de junho com o objetivo de discutir o futuro da música na era das maiores mudanças já surgidas no segmento da indústria fonográfica – se é que ainda podemos usar esse termo. Como previsto, não se chegou a conclusão alguma sobre “como fazer música” nestes nossos novos tempos, mas ótimas discussões foram travadas.

As palestras tinham peso e, ao mesmo tempo, atmosfera intimista. E ao contrário do que costuma ocorrer em outros grandes eventos do gênero, ali foi possível discutir dentro e fora do ambiente das palestras. Do vinil ao mp3, toda a história do consumo de música foi destrinchada. Sem dúvida, a publicidade agora é uma atribuição dos próprios músicos – e as estratégias de divulgação fazem escala, necessariamente, na internet. Indústria e músicos se fizeram representar nos debates. Antes em lados opostos, antagônicos, hoje eles vivem um outro momento, no qual a indústria fala de forma mais humilde (embora um tanto contrariada) e os músicos se mostram mais autônomos (mas ainda assim preocupados com o porvir).

Mesmo que nem sempre tragam lucro, os festivais foram apontados como estratégias benéficas de exposição e expansão das redes de relacionamento. As “condições de vida” da música independente também tiveram espaço nos debates. Em um deles, encabeçado pelo chairman e pelo vice-presidente da Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin) – Fabrício de Almeida Nobre e Pablo Capilé, respectivamente –, discutia-se o significado do sucesso para um músico. “Para alguns, sucesso é pagar conta, como um pedreiro”, pontuava um aborrecido Fabrício Nobre, aludindo à respeitável, porém não muito artística profissão.

O copyleft – a liberação, por parte dos artistas, de seus direitos autorais – pode contribuir para a perda de benefícios comuns, deixando vulnerável o futuro dos músicos. Sem respaldo legal, eles podem acabar obrigados a fazer shows pelo resto da vida para sobreviver, imposição um tanto quanto atroz para um compositor, por exemplo.

À noite, os showcases animavam o povo no Porto Musical. Um dos destaques foi o do paulista Curumin, que conseguiu dar um pulinho no Recife em meio à sua turnê estadunidense e entoou hits de seu segundo álbum, Japan Pop Show. Nas picapes, a festa mais animada foi orquestrada pelo DJ servo Robert Soko, que abarrotou a pista da Torre Malakoff. O som dionisíaco do leste europeu, mais precisamente da península balcânica, é o que há de mais hype nas pistas do Velho Mundo e fez combinação perfeita com a cerveja gelada.

No final de tudo, teve uma boa nova. Para a grande maioria dos conferencistas, gente das mais diferentes linhas de pensamento, a música ainda é o ponto nodal. Não há estratégia de produção que possa realmente atropelar a criação musical. Por outro lado, o comportamento naïf, de não se valer das ferramentas disponíveis, em nada ajuda. O conhecimento dessa aliança entre “exposição virtual” e “foco na música” já constitui um excelente início. Confirmando isso, o diretor criativo de um dos maiores festivais de música do planeta, o South by Southwest: após tecer um plano estratégico de como uma banda deve se preparar para turnês nos EUA, Brent Grulke finalizou reafirmando que, “como seres humanos, vocês devem celebrar. A arte sempre será mais importante”.


PONTOS ALTOS - Vozes que dizeram a diferença no Porto Musical 2009

SEYMOUR STEIN
Fundador da Sire Records, atual vice-presidente da Warner Bros. e produtor de nomes como Ramones, The Cure e Madonna, Stein apresentou-se duas vezes, uma entrevistado porGerard Seligman, diretor geral da Womex, e outra ao lado do “medalhão” André Midani. Para ele, a tão falada crise não começou agora, mas há muitos anos. “Ela não nos abalará porque a música não é um luxo, é uma necessidade”. Ao final da palestra, visivelmente emocionado, desabafou: “Sou parte da indústria, mas sempre serei um indie”, afirmou o senhor de 67 anos, visto por alguns como representante dos predadores, mas que ali se comportava como um fofo coelhinho.

ANDRÉ MIDANI
Nascido na Síria e criado na França, Midani veio parar no Brasil em1955. Membro do Conselho Consultivo da Warner Music International, foi ao Porto Musical falar sobre a história da música brasileira – Midani foi responsável, entre (muitas) outras coisas, pelo boom da bossa nova e por parte dos álbuns consagrados da MPB dos anos 70. Em seu acalorado depoimento, baseado na autobiografia Música, Ídolos e Poder– Do Vinil ao Download, lançou hipóteses sobre o futuro da música. “Estamos em processo de enriquecimento dos países do Oriente, o que fará o Ocidente perder sua hegemonia cultural. O conceito de copyright é desconhecido na Índia e proibido no mundo muçulmano”.

NELSON MOTTA
O showman chegou chegando. Falando como só ele fala, de cara sustentou que download pago é coisa de europeu e que não funciona nem funcionará no “país da boca-livre”. “A banalização da música gravada engrandeceu a ao vivo”, assinalou. Motta foi jocoso quando perguntado sobre a “nova MPB”. “O músico, quando diz pra mim que faz MPB, eu digo que ele é corajoso. Fazer MPB depois de tudo que foi feito? Se não for para fazer melhor, é melhor não fazer”, brincou, falando sério. O jornalista e produtor também apontou o hip hop e a música eletrônica como as grandes invenções do século 21. De quebra, afirmou ainda que a música independente não precisa mais da indústria para existir.



* É jornalista

20090422

Relato anacolútico da procissão recifense de música: segundo dia


Há algum tempo não ia tão simpática acompanhar uma maratona de bandas. Tinha apreço moderado por quase todas ou ao menos por podê-las ouvir no mesmo dia. No luxuosíssimo Credicard Hall, não havia filas para comprar drinks e os toiletes eram equipados com papel higiênico da mais alta qualidade. Não se sentia calor e a tradicional lama, íntima aos freqüentadores do Festival em tempos de Centro de Convenções, não havia sido convidada.

A primeira banda a se apresentar, às 18h30, foi a performática Johnny Hooker & Candeias Rock City. Johnny entrou super glamouroso, vomitando impropérios e causando, como não deixaria de ser. O problema foi o horário, as pessoas ainda sóbrias; os mais excitados (tradução ruim) eram os amigos de bairro do crooner, que efusivamente respondiam às malcriações do danadinho. Foi esquema Escola do Rock Glam – todas as firulas inclusas. Trocas de roupas, rebeldjia, palavras de baixo calão, apologia à maconha (transgressor pacas) e o clímax da coisa, Johnny e duas mocinhas que entraram enxeridas com seus chicotinhos e, após algum floreio, tiraram as blusas. Deu-se o ménage no palco, o que fez acordar as almas que ainda estavam se situando. Apesar de eu achar uma banda a ser escalada para ser, no mínimo, a terceira a se apresentar, foi um início emblemático, que eu adorei ter visto.

Absolutamente strokeana e sem fazer a menor questão de esconder tal fato, a pernambucana The Keith entrou na seqüência, com um som massa, difícil de não simpatizar. A banda, cujas letras eram em inglês, tinha um vocalista que era total Casablancas – até as calças apertadas deixavam o popô dele parecido. Cantaram um cover do The Turtles, So Happy Together, uma coisa meio desastrosa, mas acho que ninguém se importou tanto. O Gabriel virou e disse: “O vocalista é o homem mais bonito que eu já vi”. Como adendo, Gabriel é hetero.

Na seqüência, Vivendo do Ócio. As letras em português quebraram um pouco a sonoridade do que vinha sendo ouvido; agora, poderiam ser entendidas por mais gente. Ao menos para alguns, já que o som não estava lá gradiscoisa. Os baianos fizeram um róque que me soou meio genérico, com letras magras, exceto por uma canção, intitulada Fora, Mônica. Os quatro rapazes tocaram Raul na moral, representando o Estado; o público se quedou meio apático nessa hora, talvez Nós Não Vamos Pagar Nada não tenha sido a melhor escolha. Eu achei paia, mas estava na terceira dose de vodca, com a felicidade se encaminhando, tudo se resolvendo.




O segundo grupo baiano representou de verdade. Power trio irado (de ira), a Retrofoguetes veio vestida de macacões de gari, com jeito de quem queria tocar o terror de facto. O baixista, quase um Kid Rock, era um magro com uma cabeleira loira fininha e um chapéu de cowboy. Uma banda instrumental pra segurar a história toda tem mesmo de ser muito boa. Foi o caso dos virtuosos conterrâneos de Pepeu Gomes, que tocaram cerca de seis peças de música surfista, outras tantas meio trilhas de ficção científica, passeando por uma coisa meio Gogol Bordelo (muito hype no mundo indie). Sim, ainda teve uma versão de Misirlou, bem parecida com a de Dick Dale para a trilha de Pulp Fiction.

E Jon Spencer. Digo, Heavy Trash. A indumentária dos músicos, os cabelos lindamente ensebados com topetes e o baixo acústico davam ao concerto toda a mise em scéne dos cinqüentas (usarei trema até depois de 2010). Teve rockabilly feroz e também folkzinho ótimo com vocal fanhoso. Sobretudo frustração de expectativas e músicas saborosamente intermináveis. Mas o som estava muito baixinho, bem além do intimismo, deu um pouquinho de vergonha. O Rodolfo dizia: “Jon Spencer, véi! Até pegar a Winona Rider o cara pegou”. Eu disse a ele que é óbvio que quem decide essas coisas é a Winona.




A Volver apareceu depois, botando banca. Famosa em Recife, rolava um “canta com a gente” tranqüilo. Bandeira do Brasil no palco, como se não soubéssemos. Músicas pouco distintas umas das outras, com exceção do hit, Tão Perto Tão Certo, destoante de alguma forma das outras composições. No final, cantaram não sei por que uma música do Fagner – talvez por estar ligada a Cecília Meireles, não sei –, aquela que diz: “quando penso em você, fecho os olhos de saudaaaaadeee...”. Mais no finalzinho desse cover, o vocal soltou um “são as águas de março fechando o verão” e a gente ficou se olhando pensando: “que poha é essa, beesho?!”. Daí, fim. Cabou, abstrai: vã beber. Gabriel vira para mim e desabafa: “Preferia ter visto Skank, cara”.

Ainda eram 22h45 quando a sétima banda se apresentou. A trilíngüe Vanguart chegou chegando com Los Chicos de Ayer. O molejo matogrossense do baixista Reginaldo Lincoln (sexy) sempre me encantou, são uns passinhos curiosos que ele ensaia enquanto toca seu instrumento posicionado acima do umbigo. Uma música nova foi apresentada, de nome Robert, que Hélio Flanders explicou para confundir ser algo que todos os cuiabanos conhecem. Uma versão muito bonita de O Mar, de Dorival Caymmi, começa com uma cadência abaixo até que anima e vira quadrilha. E a última música foi Semáforo. E todos os meus amigos fumam e querem morrer; eu queria parar.

Não se pode dizer que o show da estourada Móveis Colônias de Acaju, ou Móveis (porque dá preguiça falar e muita), foi uma igreja, como o de Marcelo Camelo. Talvez uma orgia com muitos partidários. As mudanças no palco eram aparentes. Decoração colorida, os dez rapazes com calças brancas e blusas multicolores, além de um plus inegável em qualquer festival alternativo: chuva de papel picado. Houve também uma meia dúzia de isqueiros acesos (gente feliz, que se ama, não fuma) e muitas mãos levantadas leste-oeste. Coisa muito fina, mesmo. E muito alegre, tudo a ver com o Carnaval, com o frevo. Digamos que Goiânia está para a música do leste europeu assim como Recife está para o frevo. Fizeram a roda no final e tudo virou uma micareta insana. Eu gosto dessa banda, mas o show era tão tão feliz que me deixou meio deprê. Até Portishead ficou sorridente com a versão que eles fizeram de Glory Box.

Comemorando 25 anos de existência, a banda Mundo Livre s/a fez um show de 40 minutos com novos arranjos eletrônicos, mas que não fez jus à solenidade tão especial. Não sei se pelo cansaço do público, por Recife estar acostumada a assistir sempre aos shows da banda ou pelas polêmicas de 04, mas o público estava pouco ruidoso. Tocaram duas canções novas, seguidas por um apanhado de sucessos como Bolo de Ameixa e Melô das Musas, músicas que transitam pelo tênue fio de náilon entre o machismo e elogio às mulheres gostosas (mas só às gostosas).

Os sinos badalam e os fiéis entram na igreja. O problema, veja bem, não é o Marcelo Camelo, que fechou o segundo dia do Festival, mas esse público Los Hermanos. Tentei me concentrar um pouco no Hurtmold, banda linda que emoldura o rapaz. O mic do Camelo estava alto, o que foi funcional demais. É um cd muito bonito, muito triste, que bate insistente em teclas como a volatilidade de tudo e, claro, a solidão. Ouvi belas canções como Doce Solidão (título de forró estilizado) e Mais Tarde. Tocou Janta sozinho e fez uma pausa suspeita no final, o que os meninos interpretaram como uma lágrima fugidia. Aí perto de duas da madruga acabou geral, estávamos podres e esfarrapados. Fomos comer sanduíches e falar mal das pessoas.

talita marques

20090227

Cobertura Rec-Beat 2009








Clipagem do idéia-fixa: disponibilizamos o texto publicado na quarta-feira ingrata (25/02), pelo jornal Gazeta de Alagoas, com a cobertura de três dias do festival Rec-Beat 2009. Texto de Carla Castellotti & fotos de Talita Marques.

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UMA JANELA PARA OS SONS DO MUNDO

Prestes a estrear sua “edição paulistana” – amanhã, no SescPompeia –, neste carnaval o Rec-Beat 2009 transformou o Caisda Alfândega, no Recife, numa verdadeira “babel” de sotaques musicais. A Gazeta esteve láe mostra por que na cena independente ninguém precisa ser poliglota para entender qualé o grande barato da música

Recife, PE – O que começou como uma tentativa de impulsionara cena musical independente do Recife virou festival – que alça novos voos a partir desta quinta-feira (26), com a abertura da “edição paulistana” do evento. Mas o fato é que a ida do Rec-Beat para São Paulo não é bacana somente por levar bandas do Nordeste até o “olho do furacão” no centro cultural do País. Também serve para mostrar que o“independente” se vira e, mais ainda, que conta com a (boa) vontade daqueles que trabalham para movimentar as engrenagens desse “nicho” cuja produção se transformou na salvação de muitagente que não está a fim de ouvir mais do mesmo. Produzido por Antonio Gutierrez, o Gutie, neste carnaval o Rec-Beat apresentou cinco atrações da América do Sul, como oDJ Original Hamster (do Chile) e os venezuelanos do DesordenPúblico, que evocaram um ska de primeira em sua performance. Houve ainda um representante da música africana, o angolano Wyza, e até mesmo o ucraniano Gogol Bordello, que trouxe seu inegável espírito carnavalesco para o festival. Mas para além dessa “antena ligada” na música independente que é produzida mundo afora, o Rec-Beat 2009 reuniu nomes já consagrados da cena musical pernambucana, a exemplo do DJDolores e da banda Eddie, e abriu espaço para grupos que usam ainternet para fazer som autoral,como os potiguares da Camarones Orquestra Guitarrística ou osparaibanos do Burro Morto. Nos quatro dias de festival, 20 bandas subiram ao palco, mostrando– de graça – a originalidade e a competência da música independente. O resto ficou por contado clima todo próprio do carnaval pernambucano. Confira na sequência.

DOLORES E RUSSO FREVO

No Sábado de Zé Pereira, primeira noite do festival, a chuva caía sem dar trégua. Destacada para “abrir os trabalhos”, Catarina Dee Jah tocou para o pequeno público que acompanhou a apresentação, mostrando a misturade som eletrônico e pegada brega que virou “cool” no turbilhão de novidades musicais da internet.


Devido à chuva, porém, quem acabou de fato abrindo o festival foi o pessoal da Camarones Orquestra Guitarrística, que trouxe de Natal (RN) uma performance rock’n’roll instrumental – e aí o público começou a enchero espaço do Cais da Alfândega. A noite seguiu com a primeira atração internacional do Rec-Beat, o DJ chileno Original Hamster, que se dividia entre os botões das pick-ups e os vocais. O show se prolongou mais do que o necessário, e a plateia só se animava quando ele “jogava”com ritmos de ragga.

Na hora em que o DJ Dolores subiu ao palco, o Cais da Alfândega já estava tomado para o que viria a ser o melhor show da noite. Dolores se apresentou com banda e vocal de Junior Black(Negroove), e sua mistura de ritmos regionais e música eletrônica – a exemplo da versão que “aglutinou” O Crime Não Compensa (GenivalMacedo/Eleno Clemente), do repertório de Jackson do Pandeiro, com Seven Nation Army, do White Stripes – casou muito bem. O povo não parava de dançar.

Com o cancelamento do show do “papa do hip-hop”Afrika Bambaataa, foi um“elemento-surpresa” quem encerrou a noite do primeiro dia de festival: Gogol Bordello, cuja apresentação contou com o auxílio de um DJ, um vocalista e de uma espécie de tradutora simultânea e dançarina do gypsy punk. Valeu mais pela presença do performático Eugene Hütz do que pelo som executado. O problema é que muitas das bases já estavam gravadas– inclusive algumas de vocal –, e o show ganhou um tom improvisado, ainda assim capaz de agradar, em especial durante a execução de “coisas nossas” como MorenaTropicana (Alceu Valença/Vicente Barreto). O frontman também aproveitou a ocasião para mostrar uma música nova, Russo Frevo, na qual declara sua simpatia pelo carnaval do Recife.

PLURAL E ESPONTÂNEO

O domingo se iniciava como que prometia ser o últimoano do bloco Quanta Ladeira– em atividade desde 1994 e com o cantor Lenine entre seus fundadores, a agremiação reuniu famosos de Pernambuco e artistas que estavam pelo Recife durante o carnaval, a exemplo do DJ Dolores, da cantora Pitty e do produtor musical Nelson Motta. Os próprios integrantes do bloco fazem questão de dizer que tudo se trata de uma grande“fuleiragem”, na qual os convidados cantam de improviso as músicas parodiadas de temas cotidianos, brincando com personagens como políticos e celebridades.

A segunda noite do Rec-Beat foi aberta pelos meninos do River Raid, que já têm dez anos de carreira nas costas. Com seu rock afiado, eles mostraram por que são capazes de tocar em festivais alternativos internacionais e chamaram o público para o Cais da Alfândega. ClayRoss, vindo dos EstadosUnidos, demonstrou que é possível um gringo tocar (bem) música brasileira, e de forma honesta. O guitarrista passeou por entre ritmos folclóricos nacionais e estadunidenses e, falando em português, explicou que seu afeto por essas terras vem da nossa pluralidade musical. Com texto decorado, o rapaz falou bonito e fez o público dançar forró em pleno carnaval.

Garoto-prodígio do piano, Vitor Araújo é bom, mas como cada tipo de festa exige um traje adequado, ele destoou da programação. Cansou o público. Wyza, músico angolano, tinha o acompanhamento de uma banda formada por brasileiros – responsáveis, inclusive, por fazer o contato com o festival. Sua música evidenciava o regional, com letras cantadas em diferentes dialetos do continente africano.

Tocando sucessos conhecidosdo público, como Maranguape (em homenagemao mestre Erasto Vasconcelos), a banda Eddie fechou a noite e ainda mostrou o repertório do recém lançado Carnaval no Inferno, seu novo álbum. Acachapante, a apresentação lembrou a todos o espírito daquilo que um dia já foi mais comum em festivais alternativos, como “divulgar o som” vendendo CDs depois de terminado o show.

SEGUNDA-FEIRA GORDA

E o festival continuou na segunda-feira (23). Dessa vez a atração de abertura veio da periferia, mas tocava axé e tinha vínculos com o “independente”. A mistura, apesar de estranha, arrastou uma multidão ao corredor do Cais da Alfândega, onde o cantor João do Morro – produzido por Antonio Gutierrez, idealizador do Rec-Beat – foi ovacionado pelo público e ficou visivelmente emocionado coma resposta da platéia durante seus 60 minutos de show.

O Nuages, do Equador, é uma daquelas atrações cujo som é cheio de peculiaridades. Querendo mostrar um carnaval cigano, a banda conseguiu apenas despertar a curiosidade de parte do público. Já o ska do Maria Pastora, uma bela banda do Recife repleta de metais, passeou pelo estilo tocando clássicos como Monkey Man, preparando a atmosfera para a grande atração da noite: SilviaMachete.

Quando a nova cantora da MPB surgiu, Recife estava de baixod’água. Porém, com o humor próprio de quem usa uma pomba na cabeça, ela driblou os problemas e mandou ver com seus sucessos– para arrebatar os corações românticos, porém safados. Sim, nada melhor para embalar um carnaval... Silvia brincava com o bambolê e com o público, que encarou o toró e não arredou o pé diante de sua apresentação cheia de performances e de releituras para canções como Girls Just Wanna Have Fun e Garota de Ipanema. O Rec-Beat foi o maior público da cantora e artista de circo, e seu show provavelmente um dos destaques desta edição.

Fechando a noite, outra banda de ska, só que mais influenciada pela pegada punk-rock e com letras combativas. Da Venezuela, o Desorden Público reuniu vários músicos trajados de paletó preto, que fizeram um show divertido. Encerrava-se ali o penúltimo dia de festival– o Cordel do Fogo Encantado seria a atração da terça.

Ok, na volatilidade dos dias de hoje não dá para arriscar previsões sobre aquilo que realmente ficará para contar história. Mas são iniciativas como a do Rec-Beat que tornam possível alavancar a carreira de muita gente boa. Uma dessas promessas é Silvia Machete, que depois de merecidos elogios do produtor-pop Nelson Motta e de seu primeiro show para um grande público, só precisa de tempo para deslanchar.